O grunge nasceu como uma explosão de contradições: melodia e ruído, lirismo e raiva, ternura e ódio. Seattle, nos anos 90, era o epicentro de guitarras sujas e corpos em atrito com o mundo. A narrativa oficial cristalizou-se em redor de vozes masculinas — Kurt Cobain, Eddie Vedder, Chris Cornell —, mas seria uma amputação da memória esquecer que as mulheres também ergueram a cena com a mesma potência e riscos muitas vezes maiores.
O grunge feminino não era apêndice, era nervo exposto. Courtney Love com as Hole transformou o sofrimento íntimo em manifesto público. Live Through This (1994) soa até hoje como um diário escrito com sangue e delineador borrado: “Doll parts” não é só uma canção, é uma autópsia do corpo feminino. Courtney encarnava a contradição de ser musa e monstro, alvo de culto e de ódio, presença ruidosa e necessária.
Ao lado dela, Kat Bjelland, com as Babes in Toyland, arrastava o grunge para uma vertigem quase ritual. O disco Spanking Machine (1990) é uma corrente elétrica de guitarras que cortam como lâminas cegas. Bjelland não apenas cantava: ela gritava como quem invoca um exorcismo coletivo. Sua estética, carregada de vestidos infantis e fúria, foi mal interpretada por muitos, mas traduzia a perversão das fantasias de pureza impostas às mulheres.
Donita Sparks e Suzi Gardner, com as L7, deram ao grunge a sua veia mais irónica e suada. Bricks Are Heavy (1992) é uma pedrada: “Pretend We’re Dead” tornou-se hino, mas basta ouvir “Shitlist” para entender que não havia pacificação possível. E há Mia Zapata, dos The Gits, talvez a face mais trágica e comovente dessa cena. Sua voz tinha algo de blues e rua, um grito rouco que atravessava guitarras distorcidas. Zapata foi assassinada brutalmente em 1993, e sua ausência ecoa como ferida aberta. Falar de mulheres no grunge é também falar de violência estrutural, do silenciamento real de uma voz que prometia durar.
Essas artistas dialogavam, ainda que indirectamente, com as riot grrrls — Bikini Kill, Sleater- Kinney, Bratmobile —, que nasceram na mesma geografia e época, cruzando punk e feminismo. Mas o grunge feminino tinha a sua própria densidade: menos panfletário, mais entranhado no visceral, no corpo que dói, que deseja, que se mutila e se afirma.
A literatura pode-nos ajudar a ler essa cena: havia em Courtney Love o mesmo gesto de Sylvia Plath ao abrir o gás do fogão — uma estética da destruição íntima tornada arte. Em Kat Bjelland, ouvia-se algo de Antonin Artaud: teatro da crueldade, performance que não se contentava em entreter, mas queria ferir. Donita Sparks lembrava as gargalhadas de uma Hilda Hilst irónica e obscena, cuspindo no rosto da moral.
Lembrá-las é devolver à história sua pluralidade. O grunge não foi apenas o retrato de jovens homens atormentados em flanelas. Foi também o corpo feminino gritando, deformando o palco, rasgando o microfone com unhas e dentes. Foi uma literatura de distorção escrita em acordes dissonantes.
